Doutor, até do hospital
Te sacode enfermo bando.
Qual será disto a causal?
É porque, em tu receitando,
Qualquer doença é mortal.
Manuel Maria Barbosa du Bocage
Aproveito a verve de Bocage para abordar temas médicos, numa altura em que a negligência médica é propalada mas onde se desconhece suficientemente o panorama em que ocorre. Não sou detentor da verdade mas, deixarei aqui a minha verdade...
Manda a praxis que os recém-licenciados em Medicina façam o Juramento de Hipócrates, antes mesmo de estarem inscritos na Ordem e sujeitos ao Código Deontológico da classe; manda a boa prática médica que o profissional conheça e siga as "guidelines" emanadas dos organismos de referência, e.g. WHO, Colégios de especialidade, etc.; manda o bom senso que o médico exerça "medicina defensiva" a fim de evitar problemas de maior no exercício de funções; manda a competência médica que o profissional esteja actualizado em termos de competências e saberes; e manda a cautela que o médico evite situações dúbias "à mulher de César...".
Infelizmente, em Portugal, se por um lado a vulgarização dos serviços de saúde veio trazer uma melhor situação em termos hígidos, por outro, o profissional médico passou a gozar de menos respeito por parte dos seus concidadãos que maioritáriamente o tomam por face do Sistema e tratam em conformidade. E é ver o ror de gente que solicita exames auxiliares de diagnóstico ou terapêutica farmacológica, sobretudo antibiótica, sem ter consciência do custo de uma e dos riscos da outra...é fartar vilanagem que "os nossos descontos é que pagam isto!...".
Eu ainda sou do tempo em que ir ao médico era uma espécie de litúrgia que implicava algum ritual. Vestia-se a roupa domingueira, não se fazia barulho na sala de espera do consultório, o sr. Doutor era ouvido religiosamente e as respostas eram tão exactas quanto possível. Outros tempos...
Hoje o médico exerce sobre várias pressões que o podem desconcentrar da sua função primordial: o exame objectivo do doente a fim de obter um diagnóstico para o factor iatrogénico.
Ele é a Administração que pressiona a fim de aumentar a produtividade reduzindo os custos; a Indústria que, tenta colocar no mercado e sobretudo comercializar o máximo para rendibilizar os investimentos em investigação e comercialização de novas moléculas; a Farmácia que por vezes concorre em vez de complementar; os Laboratórios de análises clínicas, as Físiatria e Fisioterapia que se digladiam entre si na angariação de utentes/beneficiários; a Clínica privada que envia prescrições de exames complementares de diagnóstico só subsidiados no SNS; e os Utentes/Doentes/Beneficiários/Pacientes/Associados/Segurados, etc. que aspiram a ser atendidos rápidamente, antes de entrar no gabinete médico, e demoradamente após estarem em contacto com o clínico, daí resultando um diagnóstico objectivo e uma terapêutica barata mas eficaz.
Sem ser exaustivo creio não ter exagerado no que fica exposto.
Temos então o clínico, sujeito a pressões várias mas que, no conjunto, afectam a pessoa nos diferentes níveis que a constituem: Físico, Psíquico, Económico e Social. Exemplifico, recorrendo a um caso recorrente na prática clínica de todos os médicos, alguém que, tendo faltado ao emprego por doença, mas que não se dirigiu a qualquer unidade de prestação de cuidados de saúde ou chamou ao domícilio um médico no dia em que faltou, só pode justificar a falta com um atestado médico... ao apresentar-se perante o clínico a solicitar o dito atestado coloca-o numa situação delicada. A de atestar por sua honra que verificou o estadio mórbido numa data em que o não fez. Qualquer que seja a atitude tomada é sempre uma atitude confrangedora para o médico...
E é nestas condições que o médico tem de levar a cabo seu míster, arriscando o erro. Aqui há alguma similitude entre médicos e guarda-redes, se errar a consequência poderá ser grave, ele está no fim da linha... e as circunstâncias em que labora ajudam, por vezes, a que a probabilidade de errar seja acima do que seria desejável.
Voltando a Bocage... se hoje as condições de exercício da Medicina não são as ideais, no Século XIX então... e os juizos de valor sobre o acto médico menos fundamentados que na actualidade.
Vénia aos"bons" e "maus" médicos de antanho que possibilitaram com seus erros e acertos a evolução da Medicina, o aumento da esperança média de vida e a qualidade de vida dos seus concidadãos (extensiva aos demais agentes de prestação de cuidados de saúde).
Sem querer desmerecer o génio de Elmano Sadino e recordando o refrão de um velho anúncio televisivo " se fosse hoje tudo mudava na cidade ou no campo..." ele não teria falecido como faleceu, a Medicina teria uma alternativa para ele e a Farmácia também...
1 comentário:
Em poucas palavras se podem traduzir grandes verdades. Congratulo-o pela sua capacidade de exposição tão assertiva.
A medicina é e será sempre um mal-afamado pau de dois bicos onde inevitavelmente é o médico quem se espeta. :) Sempre na tentativa de conciliar ciência e deontologia no melhor interesse do doente.
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